sábado, 8 de março de 2008

Mia Couto



Bartolominha e o pelicano

" Quando lhe falámos em sair dali, ela se contrafez. Afinal, viéramos buscá-la? Pois que fôssemos na mesma via de regresso, que ela dali, não arredava. Argumentou meu pai que ela não podia viver isolada de tudo, em lugar tão despertencido de gente. Falou meu tio que ali não chegava nem desembarcava notícia. Minha mãe acrescentou muitas lágrimas, com a alma entalada na garganta.
Bartolominha respondeu, sem palavra, apontando a campa junto ao farol. Depois, se afastou e ficou de costas olhando o mar. Era como se, em silêncio, nos convocasse. Alinhámos com ela, perfilados frente ao oceano. Que queria ela dizer, assim muda e queda? Usava o oceano como argumento? Meu tio ainda insistiu:
__ Quem lhe arranja sustento?
Nos mostrou, então , o pelicano. Era um bicho que ela criara desde pequenino. A ave se afeiçoara, mais doméstica que um familiar. A pontos de ir e vir e, todos os dias, lhe trazer peixe para ela se refeiçoar.
___ Tenho de ficar aqui, regar o farol. Foi o meu Bastante que me pediu para eu não deixar emagrecer este farol.
Regressámos sem a conseguir demover . Eu fiquei com o pensamento roendo-me o sono. Durante noites fui roubado ao descanso. Podia eu deixar o assunto assim? Não, eu não podia desistir.
E voltei a visitar a ilha. Demorei-me ali uns tantos dias. Juntei argumento, aliciei o convite. A avó que viesse que eu lhe daria guarida e aconchego em minha nova casa. Mas nada. O mesmo sorriso desdenhoso lhe vinha aos lábios. Depois lhe sugeri que viesse comigo viajar por terras lindas.
___ Só quero viajar quando for completamente cega.
Estranhei. Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:
___É que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já estejam dentro de mim.
Arrumei a vontade. A velha senhora tinha raízes fundas. " [...]


Mia Couto, "Bartolominha e o pelicano" (excerto),
in Na Berma De Nenhuma Estrada e Outros Contos,
Editorial Caminho, 3º edição, Lisboa, 2001, (p. 22 e 23)

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